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Sandokan e MH370

por Paulo Pinto, em 29.03.14

Para os portugueses, "Malásia" significa essencialmente duas coisas: Sandokan e o mistério do vôo MH370 da Malaysian Airlines. O primeiro pouco diz a quem tem menos de 40 anos, mas qualquer cota encartado recordar-se-á dos olhos verdes do Kabir Bedi, da loiríssima Mariana, filha do vilão Lord Brooke, e de um patusco português que por lá andava, companheiro de lides do herói e que ostentava o irritante nome de Yanez Gomera. O facto de ser homónimo do então recém-eleito presidente da República era motivo de chalaça frequente, por entre o entusiasmo de mais um episódio e a troca de cromos para a caderneta, porque a descontração de um contrastava claramente com a fleuma do outro. Não falo do Sandokan no livro, mas teria sido um bom pretexto para introduzir as especificidades mais ou menos bizarras da presença portuguesa na região e abordar o contexto histórico em que Emilio Salgari se baseou - e distorceu - para escrever os seus romances.

Quem tenha acompanhado o desenrolar do novelo diário que envolve o desaparecimento do MH370 poderá ter reparado num pormenor: Fala-se em "Malásia", "Malaysian Airlines", mas depois mencionam-se as "autoridades malaias", os "passageiros malaios". Malásia e malaios? Porque não Malaia e malásios? ou tudo igual, de uma forma ou de outra? Na verdade, "Malásia" e "malaios" designam, em rigor, coisas diferentes (existe, em português, a palavra "malásio" - i.e., hab. da Malásia, ref. à Malásia - , mas não é usada).

Malásia (Malaysia) é um neologismo. Em português nem faz muito sentido, porque deveria ser "Maláisia" O termo (Malaysia, Malaisie) foi criado no século XIX por geógrafos europeus para designar um determinado contexto histórico-geográfico (como Melanésia, Indonésia, e outros que não vingaram) e só foi adotado em 1963 pela nova nação, que até então se chamara... Federação Malaia. De onde vem a diferença? É que "malaia" é a península, e a partir do momento em que a recém-independente federação de estados malaios incorporou Sabah, Sarawak (na ilha de Bornéu) e Singapura (expulsa pouco depois), passou a chamar-se "Malásia", com um significado, portanto, essencialmente político.

"Malaia" é, simultaneamente, algo de mais restrito e mais abrangente; restrito, porque designa, do ponto de vista geográfico, apenas a península com esse nome; abrangente porque remete para um largo horizonte cultural e civilizacional que extravasa tanto a península como a própria Malásia. Pode-se dizer que parte das gentes de Lingga, Bornéu, Samatra, Java (Indonésia), ou Singapura, são "malaios", porque partilham entre si um conjunto de traços: um determinado estrato de população austronésia, de hábitos mercantis e marítimos, que falam uma língua comum, partilham uma cultura material e possuem o Islão como traço de união. Sandokan é um herói malaio, mas vive em Sarawak, na ilha de Bornéu, e não na Península Malaia. Qual a sua origem? Bom. Pelos cânones "malásios", foi Malaca, um importante sultanato que floresceu no século XV e que foi o principal difusor da "cultura malaia" por todo o Arquipélago, até ser tomado pelos portugueses em 1511. Porém, as suas raízes remontam ao reino "medieval" de Srivijaya, cuja sede se situava em Palembang, em Samatra. Na atual Indonésia, portanto. Ora, a Indonésia é a herdeira das Índias Orientais Neerlandesas, e a Malásia, das possessões coloniais britânicas, que inicialmente se chamaram de Straits Settlements e que posteriormente tomaram a forma de um protetorado sobre os diversos reinos da Península Malaia. Há portanto, um passado colonial que ditou as linhas do quadro político presente. "Malásia" e "Indonésia" designam essencialmente entidades político-administrativas que cruzam, agregam, sobrepõem e separam diferentes realidades culturais e históricas do "mundo malaio-indonésio", termo de uso corrente na atualidade, que evita ferir suscetibilidades nacionalistas de ambos os lados da fronteira.

Adenda: para quem tiver curiosidade para questões idênticas - no caso, a explicação para Birmânia/Burma/Myanmar, recomendo o artigo de Luís Filipe Thomaz que saiu na Brotéria de fevereiro ("A Birmânia mudou de nome?").

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publicado às 00:27


5 comentários

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De Joana Dias Antunes a 31.03.2014 às 00:11

Deixo um pensar em voz alta, naturalmente muito ingénuo. Pouco ou nada sei destas matérias, portanto espécie de elefante míope que perdeu os óculos, a ousar passear desastradamente numa loja de porcelanas finas.
A palavra, a abraçar fronteiras em movimento, também ela se modifica no abraço, numa volta a mudança surge de acasos e usos pouco cuidados (mas não inconsequentes), um pisar no pé; noutra volta, serve para gerir suscetibilidades e manipular implicações políticas.
Esta imagem lembrou-me agora uma entrevista que ouvi há poucos dias de Steven Pinker, que falava da interface entre linguagem e as relações humanas e o uso que fazemos da linguagem para ‘fazer psicologia social’. Animais de política, história e cultura, dizemos palavras que são mais e menos do que a palavra em si mesma e todos entendemos, em geral, essa língua não literal (mas porque o fazemos, realmente?). Noam Chomski diz que, se um marciano visitasse a terra e ouvisse os humanos falarem as suas diferentes línguas, acharia que eram todas uma só, que esta diversidade é bastante superficial...na verdade, fala da linguagem como uma espécie de órgão mental. E se continuarmos a reduzir o zoom do mapa: porque há linguagem, de todo? Robin Dunbar defende aquela ideia da linguagem como substituto da catagem – que seria a ferramenta social de estabelecer alianças e influências. Quando o aumento do tamanho dos grupos se tornou impraticável para continuar com esse sistema devido ao tempo necessário para uma atividade de um para um, a linguagem ofereceu a vantagem de ‘catar’ múltiplos parceiros ao mesmo tempo otimizando a gestão das alianças estratégicas e permitindo o aumento do tamanho do grupo (a sua hipótese e temáticas muito atuais como as redes sociais nesta apresentação do TED é curiosa: https://www.youtube.com/watch?v=07IpED729k8). Mas ninguém se entende aqui assim!
Que devaneio.Voltando ao mapa, e trocando de lentes, será que a ciência histórica e a psicologia dão as mãos?
A polémica acesa em torno do impacto das diferentes línguas nas vivências afetivas e de personalidade, ainda sem consensos, parece-me que pede pontes (intra e interdisciplinares) e não muros. Se a ciência verificar que ser, por exemplo, falante português (ou bilingue), implica, de algum modo (por mais micro que seja), diferenças cognitivas/afetivas ou comportamentais (e sabemos que ao nível dos estudos de perceção algumas diferenças estão reportadas consistentemente, em estudos interculturais, por exemplo) então quais as implicações em tantas direções de tudo isto, que relação com os impérios na disseminação da língua, a expansão e os descobrimentos, a história da vida privada e tantas outras questões...
E nestes territórios do Sandokan, tão densos de influências recíprocas desse passado colonial, que diversidades concretamente no sentir e no agir podem ter a ver com isto? Não sei que estudos haverá neste domínio em relação à expansão e a língua portuguesa, nesta perspetiva? E fiquei curiosa. Resultado, enriquecida duplamente: informação nova, que desconhecia, e com perguntas.
Uma futilidade: toda a diversidade do contexto que refere reacendeu a vontade de conhecer a Birmânia e a ‘Maláisia’ e estas regiões. E agora? Com viagem a Timor no horizonte, vou espreitar a Airasia e sonhar – atividade livre de impostos, mas não isenta de custos - e ver no que dá (humor deprimido pela certa, com voos lowcost só na Europa).
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De Domingas Matos da Cruz a 19.05.2014 às 09:14

Tenho tentado seguir, atraves de diferentes meios da Comunicacao Social, a pista do \"desaparecimento\" do agora apenas nomeado flight 370, o que me tem
suscitado questoes varias relacionadas com as interminaveis e infrutiferas buscas levadas a efeito para o encontrar e o seu \"O Segredo da Flor do Mar\"
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De Paulo Pinto a 19.05.2014 às 10:06

bom dia. só um pormenor: "o segredo da flor do mar" não é da minha autoria; trata-se, antes, de um romance de Eduardo Pires Coelho.
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De Domingas Matos da Cruz a 19.05.2014 às 11:49

Bom dia. Tenho, autografado por Euardo Pires Coelho, \"O Segredo da Flor do Mar\" que li com muita curiosidade e interesse, e cujas pistas nele lancadas, entre a ficcao e realidades passadas, me tem levado a procurar, entre a ficcao e as realidades atuais, pistas para um fio narrativo sobre o segredo do MH370.


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De Domingas Matos da Cruz a 22.05.2014 às 23:43


Simples curiosidade minha:


Quando puder, conte-nos como foi, ou se ainda esta a realizar o seu sonho de viajar pelo territorio do \"tigre da Malasia\".

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