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blog sobre "Os Portugueses Descobriram a Austrália? - 100 Perguntas sobre Factos, Dúvidas e Curiosidades dos Descobrimentos", de Paulo Jorge de Sousa Pinto
Para os portugueses, "Malásia" significa essencialmente duas coisas: Sandokan e o mistério do vôo MH370 da Malaysian Airlines. O primeiro pouco diz a quem tem menos de 40 anos, mas qualquer cota encartado recordar-se-á dos olhos verdes do Kabir Bedi, da loiríssima Mariana, filha do vilão Lord Brooke, e de um patusco português que por lá andava, companheiro de lides do herói e que ostentava o irritante nome de Yanez Gomera. O facto de ser homónimo do então recém-eleito presidente da República era motivo de chalaça frequente, por entre o entusiasmo de mais um episódio e a troca de cromos para a caderneta, porque a descontração de um contrastava claramente com a fleuma do outro. Não falo do Sandokan no livro, mas teria sido um bom pretexto para introduzir as especificidades mais ou menos bizarras da presença portuguesa na região e abordar o contexto histórico em que Emilio Salgari se baseou - e distorceu - para escrever os seus romances.
Quem tenha acompanhado o desenrolar do novelo diário que envolve o desaparecimento do MH370 poderá ter reparado num pormenor: Fala-se em "Malásia", "Malaysian Airlines", mas depois mencionam-se as "autoridades malaias", os "passageiros malaios". Malásia e malaios? Porque não Malaia e malásios? ou tudo igual, de uma forma ou de outra? Na verdade, "Malásia" e "malaios" designam, em rigor, coisas diferentes (existe, em português, a palavra "malásio" - i.e., hab. da Malásia, ref. à Malásia - , mas não é usada).
Malásia (Malaysia) é um neologismo. Em português nem faz muito sentido, porque deveria ser "Maláisia" O termo (Malaysia, Malaisie) foi criado no século XIX por geógrafos europeus para designar um determinado contexto histórico-geográfico (como Melanésia, Indonésia, e outros que não vingaram) e só foi adotado em 1963 pela nova nação, que até então se chamara... Federação Malaia. De onde vem a diferença? É que "malaia" é a península, e a partir do momento em que a recém-independente federação de estados malaios incorporou Sabah, Sarawak (na ilha de Bornéu) e Singapura (expulsa pouco depois), passou a chamar-se "Malásia", com um significado, portanto, essencialmente político.
"Malaia" é, simultaneamente, algo de mais restrito e mais abrangente; restrito, porque designa, do ponto de vista geográfico, apenas a península com esse nome; abrangente porque remete para um largo horizonte cultural e civilizacional que extravasa tanto a península como a própria Malásia. Pode-se dizer que parte das gentes de Lingga, Bornéu, Samatra, Java (Indonésia), ou Singapura, são "malaios", porque partilham entre si um conjunto de traços: um determinado estrato de população austronésia, de hábitos mercantis e marítimos, que falam uma língua comum, partilham uma cultura material e possuem o Islão como traço de união. Sandokan é um herói malaio, mas vive em Sarawak, na ilha de Bornéu, e não na Península Malaia. Qual a sua origem? Bom. Pelos cânones "malásios", foi Malaca, um importante sultanato que floresceu no século XV e que foi o principal difusor da "cultura malaia" por todo o Arquipélago, até ser tomado pelos portugueses em 1511. Porém, as suas raízes remontam ao reino "medieval" de Srivijaya, cuja sede se situava em Palembang, em Samatra. Na atual Indonésia, portanto. Ora, a Indonésia é a herdeira das Índias Orientais Neerlandesas, e a Malásia, das possessões coloniais britânicas, que inicialmente se chamaram de Straits Settlements e que posteriormente tomaram a forma de um protetorado sobre os diversos reinos da Península Malaia. Há portanto, um passado colonial que ditou as linhas do quadro político presente. "Malásia" e "Indonésia" designam essencialmente entidades político-administrativas que cruzam, agregam, sobrepõem e separam diferentes realidades culturais e históricas do "mundo malaio-indonésio", termo de uso corrente na atualidade, que evita ferir suscetibilidades nacionalistas de ambos os lados da fronteira.
Adenda: para quem tiver curiosidade para questões idênticas - no caso, a explicação para Birmânia/Burma/Myanmar, recomendo o artigo de Luís Filipe Thomaz que saiu na Brotéria de fevereiro ("A Birmânia mudou de nome?").
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