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Peter Trick(y)ett, cap. II

por Paulo Pinto, em 11.04.14

Estou a elaborar um artigo, a publicar na Brotéria, sobre Para Além de Capricórnio (para arrumar de vez o assunto, que vai sendo tempo). Espero dar uma ideia mais ou menos clara das falácias da obra e da impreparação, das leituras insuficientes, das análises apressadas e das conclusões muito mal fundamentadas do autor. O livro não é uma exposição analítica dos indícios e suspeitas de que os portugueses terão visitado o continente australiano no século XVI; é, ao invés disso, um exercício de dedução narrativa, alegadamente irrefutável, de um princípio estabelecido logo no início: o de que Cristóvão de Mendonça reconheceu e cartografou a região numa (imaginária) viagem ocorrida em 1522-23. Provas? o Atlas Vallard, mesmo que nada, mas mesmo nada, ligue as duas coisas. Peter Trickett não é um burlão como, por exemplo, Gavin Menzies e o seu 1421. O livro contém informações interessantes e um exaustivo trabalho de prospeção e de "vista à lupa" de uma série de pormenores. Pena é que deite tudo a perder com a obsessão-Cristóvão de Mendonça, e que sacrifique dúvidas, hipóteses, indícios, dados, peças, ao entusiasmo de contar uma história bonitinha que é, no fundamental, uma ficção.

Um exemplo da fértil imaginação do autor, mas pobre método de análise histórica:

"Aborígenes a pescar à lança (...) na costa da New South Wales, início do século XIX. Em fundo, um grupo de pessoas está reunido à volta de uma fogueira, a cozinhar peixe. Poderá ter sido uma cena do género que inspirou Mendonça a chamar a Port Stephens Rio Pescadores?" (legenda da gravura 8 do livro. "Rio Pescadores", recorde-se, é apenas uma inscrição que consta no Atlas Vallard).

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publicado às 15:16

Muito aquém de Capricórnio

por Paulo Pinto, em 09.04.14

O tema do descobrimento da Austrália pelos portugueses renasce ocasionalmente na imprensa, ora pela descoberta de um canhão numa praia ora pela de um desenho de um alegado canguru num manuscrito seiscentista. Embora, do ponto de vista científico, se trate de uma questão menor - há muito que a historiografia se desinteressou por pormenores tão marcadamente eurocêntricos como "quem descobriu a terra X" - suscita natural interesse junto do público. Afinal, não vivemos hoje em plena nostalgia dos tempos - reais ou imaginários - em que as viagens portuguesas causavam assombro e Portugal era respeitado e invejado por toda a Europa? Como escapar ao fascínio da hipótese de terem sido também os portugueses os "primeiros" a chegar à Austrália?

Esta ideia tem um paladino: o jornalista australiano Peter Trickett e o seu Beyond Capricorn (em português, Para além de Capricórnio), de 2007. A sua "tese" - que não é nova, antes reformula ideias anteriores - resume-se rapidamente: na década de 1520, Cristóvão de Mendonça foi secretamente incumbido pelo rei para atingir a lendária "ilha do ouro" mencionada por Marco Polo. A sua armada partiu de Lisboa e acabou por reconhecer e cartografar o continente australiano. Os seus mapas perderam-se, mas hoje restam cópias de origem francesa, que formam o chamado Atlas Vallard. Trickett reconstitui a viagem de Mendonça e o seu périplo. É uma bela e apaixonante odisseia; pena ser pouco mais do que ficção. Deficiente domínio do português, desconhecimento da produção científica sobre a expansão portuguesa e a Ásia marítima, abordagem limitada e preconceituosa das fontes históricas, erros grosseiros de interpretação, são algumas das mazelas de que padece o seu trabalho.

Quem queira saber mais sobre o tema constatará que não falta informação, na internet e na imprensa (replicada em blogues e redes sociais), sobre as ideias de Trickett e suas variantes, tomadas como inovadoras, heterodoxas, desafiadoras das velhas tradições, ousadas, estimulantes. O autor esteve em Portugal, deu entrevistas e toda a imprensa reproduziu acriticamente a sua "tese", com maior ou menor entusiasmo. Um autor australiano a defender os brios do patriotismo português não é coisa que surja todos os dias, é um facto. Em 2009, como corolário, Trickett foi agraciado com a Comenda da Ordem do Mérito.

Já a crítica ao seu trabalho (quer à "tese" propriamente dita quer ao livro) é uma raridade. Não conheço qualquer recensão crítica à obra. A comunidade científica não reagiu? Sim, logo em 2008, o Museu da Ciência da Univ. de Coimbra realizou um colóquio e uma mesa-redonda com historiadores de reconhecida credibilidade: a obra de Trickett aponta algumas pistas de trabalho interessantes, mas a sua "tese" carece de fundamentação. Não é a hipótese de os portugueses terem, muito provavelmente, visitado a costa australiana antes de holandeses e britânicos que está errada; é, tão-somente, a novela Cristóvão de Mendonça. As atas deste encontro foram publicadas recentemente (Portugueses na Austrália: as Primeiras Viagens), mas a divulgação foi praticamente nula, em flagrante contraste com a ampla difusão de Para além de Capricórnio, cujas ficções continuam a fazer escola e a polir o ego nacional. Alguns poderão entender esta bizarria como uma prova do provincianismo português; para mim, é sobretudo um sintoma do enraizado divórcio entre público e academia, leigos e especialistas, divulgação e ciência, que persiste em Portugal.

(publicado anteontem no DN)

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publicado às 22:52

o navio fantasma

por Paulo Pinto, em 09.04.14

Acaba de sair na imprensa mais uma notícia sobre o possível achamento da Flor de la Mar, o navio que Afonso de Albuquerque carregou com o saque de Malaca após a tomada da cidade, em 1511, e que naufragou pouco depois da partida. As histórias sobre as fabulosas riquezas que transportaria são já uma lenda. A notícia do Público diz coisas engraçadas: a mais flagrante é a identificação precipitada do que estará em vias de ser encontrado com aquela nau. Ora, sabe-se que o local de naufrágio, embora incerto, foi seguramente junto a Samatra (em Pasai ou em Aru). Mas o que é noticiado é que se trata da região de Semarang  (e não "Seramang", como lá consta), na costa norte de Java. Não importa? Importa, e muito, é que Java fica a leste de Malaca; a Índia - para onde Albuquerque seguia - fica, caso ninguém tenha reparado, a oeste. A confirmar-se o achado, poderá ser um navio português, mas nunca o Flor de la Mar.

A segunda curiosidade é a referência ao tesouro. Fala-se de "60 toneladas de ouro". Isto é uma informação reproduzida por tudo o que é site de curiosidades e tesouros, mas a verdade, triste e incómoda, é que tal tesouro, muito provavelmente, não existe: não só a carga original seria certamente de valor muito inferior ao que diz a lenda, como se sabe que, após o naufrágio, parte substancial das riquezas deram à costa e foram de imediato tomadas pelas gentes da terra. Um conselho: é melhor continuarem à procura do tesouro dos Templários.

No livro, faço uma síntese da questão: pergunta 19, "Existe um tesouro da Flor de la Mar?"

(Na SIC falam do assunto, mais precisamente na Flor do Mar. Nada de espanholadas, pois então).

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publicado às 20:33

Número sete

por Paulo Pinto, em 31.03.14

O sétimo Quinta Essência, na Antena 2, à conversa com João Almeida. Rota do Cabo, vida a bordo das naus, Cochinchina, chegada dos portugueses a Timor, a mulher nos Descobrimentos, os portugueses no Tibete e as viagens chinesas do século XV são os temas, com uns quantos engasganços à mistura. Passou ontem, repete sábado. A transmissão será agora suspensa durante várias semanas, para dar lugar a emissões dedicadas aos 40 anos do 25 de Abril. As três conversas que restam serão emitidas oportunamente.

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publicado às 17:38

Sandokan e MH370

por Paulo Pinto, em 29.03.14

Para os portugueses, "Malásia" significa essencialmente duas coisas: Sandokan e o mistério do vôo MH370 da Malaysian Airlines. O primeiro pouco diz a quem tem menos de 40 anos, mas qualquer cota encartado recordar-se-á dos olhos verdes do Kabir Bedi, da loiríssima Mariana, filha do vilão Lord Brooke, e de um patusco português que por lá andava, companheiro de lides do herói e que ostentava o irritante nome de Yanez Gomera. O facto de ser homónimo do então recém-eleito presidente da República era motivo de chalaça frequente, por entre o entusiasmo de mais um episódio e a troca de cromos para a caderneta, porque a descontração de um contrastava claramente com a fleuma do outro. Não falo do Sandokan no livro, mas teria sido um bom pretexto para introduzir as especificidades mais ou menos bizarras da presença portuguesa na região e abordar o contexto histórico em que Emilio Salgari se baseou - e distorceu - para escrever os seus romances.

Quem tenha acompanhado o desenrolar do novelo diário que envolve o desaparecimento do MH370 poderá ter reparado num pormenor: Fala-se em "Malásia", "Malaysian Airlines", mas depois mencionam-se as "autoridades malaias", os "passageiros malaios". Malásia e malaios? Porque não Malaia e malásios? ou tudo igual, de uma forma ou de outra? Na verdade, "Malásia" e "malaios" designam, em rigor, coisas diferentes (existe, em português, a palavra "malásio" - i.e., hab. da Malásia, ref. à Malásia - , mas não é usada).

Malásia (Malaysia) é um neologismo. Em português nem faz muito sentido, porque deveria ser "Maláisia" O termo (Malaysia, Malaisie) foi criado no século XIX por geógrafos europeus para designar um determinado contexto histórico-geográfico (como Melanésia, Indonésia, e outros que não vingaram) e só foi adotado em 1963 pela nova nação, que até então se chamara... Federação Malaia. De onde vem a diferença? É que "malaia" é a península, e a partir do momento em que a recém-independente federação de estados malaios incorporou Sabah, Sarawak (na ilha de Bornéu) e Singapura (expulsa pouco depois), passou a chamar-se "Malásia", com um significado, portanto, essencialmente político.

"Malaia" é, simultaneamente, algo de mais restrito e mais abrangente; restrito, porque designa, do ponto de vista geográfico, apenas a península com esse nome; abrangente porque remete para um largo horizonte cultural e civilizacional que extravasa tanto a península como a própria Malásia. Pode-se dizer que parte das gentes de Lingga, Bornéu, Samatra, Java (Indonésia), ou Singapura, são "malaios", porque partilham entre si um conjunto de traços: um determinado estrato de população austronésia, de hábitos mercantis e marítimos, que falam uma língua comum, partilham uma cultura material e possuem o Islão como traço de união. Sandokan é um herói malaio, mas vive em Sarawak, na ilha de Bornéu, e não na Península Malaia. Qual a sua origem? Bom. Pelos cânones "malásios", foi Malaca, um importante sultanato que floresceu no século XV e que foi o principal difusor da "cultura malaia" por todo o Arquipélago, até ser tomado pelos portugueses em 1511. Porém, as suas raízes remontam ao reino "medieval" de Srivijaya, cuja sede se situava em Palembang, em Samatra. Na atual Indonésia, portanto. Ora, a Indonésia é a herdeira das Índias Orientais Neerlandesas, e a Malásia, das possessões coloniais britânicas, que inicialmente se chamaram de Straits Settlements e que posteriormente tomaram a forma de um protetorado sobre os diversos reinos da Península Malaia. Há portanto, um passado colonial que ditou as linhas do quadro político presente. "Malásia" e "Indonésia" designam essencialmente entidades político-administrativas que cruzam, agregam, sobrepõem e separam diferentes realidades culturais e históricas do "mundo malaio-indonésio", termo de uso corrente na atualidade, que evita ferir suscetibilidades nacionalistas de ambos os lados da fronteira.

Adenda: para quem tiver curiosidade para questões idênticas - no caso, a explicação para Birmânia/Burma/Myanmar, recomendo o artigo de Luís Filipe Thomaz que saiu na Brotéria de fevereiro ("A Birmânia mudou de nome?").

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publicado às 00:27

sexta emissão

por Paulo Pinto, em 24.03.14

Mais um Quinta Essência, na Antena 2, à conversa do João Almeida. Os planos de Afonso de Albuquerque, o messianismo do rei D. Manuel e o pragmatismo do seu sucessor, Marrocos, D. Sebastião e Alcácer-Quibir. O descobrimento pré-colombino da América, para terminar, com desvios e conversas paralelas pelo meio. Umas quantas calinadas também. Passou ontem, repete sábado. Hoje gravei o 10º e último.

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publicado às 18:11

a meio da jornada

por Paulo Pinto, em 17.03.14

5º Quinta Essência na Antena 2, à conversa com João Almeida. Igreja e escravatura, mapa de Piri Reis, os Filipes e o império português, projetos de conquista da Ásia, a "modernidade" holandesa vs. a "medievalidade" portuguesa, D. João II e o "rei merceeiro" D. Manuel são os temas, a partir do livro. Passou ontem.

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publicado às 17:58

o quarto da quinta

por Paulo Pinto, em 10.03.14

Menu: Camões em Macau, Colombo português e Pedra de Dighton. E a de Yelala, para rematar. Mais uma conversa com o João Almeida na Quinta Essência da Antena 2. Passou ontem, repete sábado.

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publicado às 16:58

mais uma quinta

por Paulo Pinto, em 03.03.14

Brasil, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Magalhães, e desvios e cerejas, muitas, na terceira conversa com o João Almeida, que passou ontem. Até do Cristiano Ronaldo se falou. E uma maldita impressão na garganta. Credo.

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publicado às 14:14

Peter Trick(y)ett, cap. I

por Paulo Pinto, em 03.03.14

Apanhado à má-fila por um ameaço de gripe (daqueles empatas que nem se declaram sem desopilam), dediquei várias horas deste domingo a ler, com grande interesse, o livro de Peter Trickett Para Além de Capricórnio, sim, esse mesmo, o tal dos portugueses a descobrir a Austrália. E sim, confesso que nunca o tinha lido com a atenção que merece. Ah! não, não fiquei convencido das suas teses, pelo contrário. Cada vez mais pelo contrário. O que até ao momento era apenas uma tese com pés de barro - embora com fama mundial - passa a ser, à medida que me embrenho na leitura, uma sucessão de disparates, ignorâncias, deduções infantis e muitos, muitos arames, fita cola, cuspo e marretada em barda. Estou simultaneamente divertido e assustado: como é possível tal coisa ser tomada, considerada, divulgada e, em muitos casos, ardentemente defendida como tese credível? Não estou a falar à hipótese (aliás, muito provável) de que portugueses tenham visitado o continente australiano no século XVI; falo, sim, da tese do livro, da viagem de Cristóvão de Mendonça e de mais uns quantos aspetos. Vou continuar a ler. Espero que tenha sido apenas um mau começo. Mas para aperitivo, fica já esta pérola, a explicação do que era um alcaide [do árabe al-qadi, "o chefe", ou seja, o comandante militar e responsável pela fortaleza de uma cidade ou vila]:

 

"O termo «alcaide» trai as suas origens mouras: embora a palavra portuguesa seja escrita no alfabeto romano, é pronunciada exatamente da mesma maneira que o árabe al-Qa'ida, tornado infame no século XXI por Osama bin Laden. O melhor equivalente talvez seja «a Organização», neste caso a Organização dos Nobres do Rei, a quem foi confiada a defesa do Reino." (p. 81 da ed. portuguesa).

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publicado às 01:44



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