Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
blog sobre "Os Portugueses Descobriram a Austrália? - 100 Perguntas sobre Factos, Dúvidas e Curiosidades dos Descobrimentos", de Paulo Jorge de Sousa Pinto
Façamos um exercício de imaginação. Há séculos, no auge da sua pujança económica, a cidade de Guimarães foi tomada por uma armada asiática. O Condado Portucalense soçobrou perante o poderio dos aguerridos malaios, feitos novos senhores dos mares ocidentais, que por cá andaram durante várias décadas. Os malaios, todavia, foram apenas os primeiros; depois deles vieram turcos e chineses que disputaram entre si, durante séculos, o domínio sobre a Península Ibérica. Portugal e Espanha são formações políticas recentes, o resultado da descolonização ocorrida há pouco mais de meio século. Não existe português nem castelhano, mas sim uma língua ibérica comum, oficial em ambos os países, afora línguas e dialetos locais. Por cá, chama-se "lingua de Portugal"; ali, "lingua de España".
O navio do capitão malaio que inaugurou a "era colonial" asiática, carregado com o espólio do saque de Guimarães, naufragou algures na costa algarvia, na viagem de regresso à Ásia. Ao longo dos tempos, cresceu a lenda em torno do magnífico tesouro português, perdido em parte incerta, e há décadas que portugueses e espanhóis o procuram. Nem uns nem outros conhecem contudo os detalhes das crónicas malaias que mencionam o assunto. Se o fizessem, o ardor da caça ao tesouro esmoreceria substancialmente. Não importa. Trata-se, no essencial, de uma questão de brio nacional, de orgulho identitário, de redenção da História. Afinal, Guimarães é o berço incontestado da nacionalidade portuguesa e da cultura ibérica. Por cá, o conquistador malaio é visto como um predador que interrompeu uma Idade de Ouro e que inaugurou meio milénio de colonialismo asiático. Do outro lado do mundo, é um herói que construiu um império, hoje desaparecido.
Imaginemos, então, que uma empresa de exploração subaquática informa ter descoberto o local do afundamento do navio, algures junto à costa do País Basco. De imediato, um ministro português declara que são apenas rumores mas, a serem verdadeiros, Portugal não deixará de fazer valer os seus direitos, por ser evidente que o navio transportava o tesouro que fora roubado ao Condado Portucalense.
A notícia corre mundo. Na Malásia, o assunto suscita algum entusiasmo em torno da provável descoberta do navio do grande governador malaio e do respetivo tesouro. A imprensa malaia reproduz, sem crítica nem confirmação, a informação das agências internacionais, a partir de uma notícia de um jornal português. Nem portugueses (que não conhecem as crónicas malaias) nem malaios (que não sabem bem onde fica Portugal) parecem aperceber-se de que o País Basco fica na direção oposta à rota que o famoso navio tomou e dista muitos quilómetros da região do naufrágio. Em todo o caso, o que impera é a excitação em torno dos exageradíssimos cálculos que circulam na internet em torno do riquíssimo tesouro. A imaginação inflamada sempre ganhou vantagem à leitura ponderada de fontes históricas. O tesouro nunca existiu, provavelmente, e o que repousa hoje algures nas águas algarvias revelar-se-á uma enorme deceção no dia em que for finalmente achado.
Tome o leitor as notícias recentes sobre mais um anúncio de uma alegada descoberta da Flor de la Mar, a nau de Afonso de Albuquerque que naufragou junto à costa de Samatra, carregada com o espólio da conquista de Malaca, em 1512. Inverta os papéis entre malaios e portugueses e terá um cenário aproximado do que se passou e do que está realmente em causa nesta história.
(publicado ontem no DN)
Estou a elaborar um artigo, a publicar na Brotéria, sobre Para Além de Capricórnio (para arrumar de vez o assunto, que vai sendo tempo). Espero dar uma ideia mais ou menos clara das falácias da obra e da impreparação, das leituras insuficientes, das análises apressadas e das conclusões muito mal fundamentadas do autor. O livro não é uma exposição analítica dos indícios e suspeitas de que os portugueses terão visitado o continente australiano no século XVI; é, ao invés disso, um exercício de dedução narrativa, alegadamente irrefutável, de um princípio estabelecido logo no início: o de que Cristóvão de Mendonça reconheceu e cartografou a região numa (imaginária) viagem ocorrida em 1522-23. Provas? o Atlas Vallard, mesmo que nada, mas mesmo nada, ligue as duas coisas. Peter Trickett não é um burlão como, por exemplo, Gavin Menzies e o seu 1421. O livro contém informações interessantes e um exaustivo trabalho de prospeção e de "vista à lupa" de uma série de pormenores. Pena é que deite tudo a perder com a obsessão-Cristóvão de Mendonça, e que sacrifique dúvidas, hipóteses, indícios, dados, peças, ao entusiasmo de contar uma história bonitinha que é, no fundamental, uma ficção.
Um exemplo da fértil imaginação do autor, mas pobre método de análise histórica:
"Aborígenes a pescar à lança (...) na costa da New South Wales, início do século XIX. Em fundo, um grupo de pessoas está reunido à volta de uma fogueira, a cozinhar peixe. Poderá ter sido uma cena do género que inspirou Mendonça a chamar a Port Stephens Rio Pescadores?" (legenda da gravura 8 do livro. "Rio Pescadores", recorde-se, é apenas uma inscrição que consta no Atlas Vallard).
O tema do descobrimento da Austrália pelos portugueses renasce ocasionalmente na imprensa, ora pela descoberta de um canhão numa praia ora pela de um desenho de um alegado canguru num manuscrito seiscentista. Embora, do ponto de vista científico, se trate de uma questão menor - há muito que a historiografia se desinteressou por pormenores tão marcadamente eurocêntricos como "quem descobriu a terra X" - suscita natural interesse junto do público. Afinal, não vivemos hoje em plena nostalgia dos tempos - reais ou imaginários - em que as viagens portuguesas causavam assombro e Portugal era respeitado e invejado por toda a Europa? Como escapar ao fascínio da hipótese de terem sido também os portugueses os "primeiros" a chegar à Austrália?
Esta ideia tem um paladino: o jornalista australiano Peter Trickett e o seu Beyond Capricorn (em português, Para além de Capricórnio), de 2007. A sua "tese" - que não é nova, antes reformula ideias anteriores - resume-se rapidamente: na década de 1520, Cristóvão de Mendonça foi secretamente incumbido pelo rei para atingir a lendária "ilha do ouro" mencionada por Marco Polo. A sua armada partiu de Lisboa e acabou por reconhecer e cartografar o continente australiano. Os seus mapas perderam-se, mas hoje restam cópias de origem francesa, que formam o chamado Atlas Vallard. Trickett reconstitui a viagem de Mendonça e o seu périplo. É uma bela e apaixonante odisseia; pena ser pouco mais do que ficção. Deficiente domínio do português, desconhecimento da produção científica sobre a expansão portuguesa e a Ásia marítima, abordagem limitada e preconceituosa das fontes históricas, erros grosseiros de interpretação, são algumas das mazelas de que padece o seu trabalho.
Quem queira saber mais sobre o tema constatará que não falta informação, na internet e na imprensa (replicada em blogues e redes sociais), sobre as ideias de Trickett e suas variantes, tomadas como inovadoras, heterodoxas, desafiadoras das velhas tradições, ousadas, estimulantes. O autor esteve em Portugal, deu entrevistas e toda a imprensa reproduziu acriticamente a sua "tese", com maior ou menor entusiasmo. Um autor australiano a defender os brios do patriotismo português não é coisa que surja todos os dias, é um facto. Em 2009, como corolário, Trickett foi agraciado com a Comenda da Ordem do Mérito.
Já a crítica ao seu trabalho (quer à "tese" propriamente dita quer ao livro) é uma raridade. Não conheço qualquer recensão crítica à obra. A comunidade científica não reagiu? Sim, logo em 2008, o Museu da Ciência da Univ. de Coimbra realizou um colóquio e uma mesa-redonda com historiadores de reconhecida credibilidade: a obra de Trickett aponta algumas pistas de trabalho interessantes, mas a sua "tese" carece de fundamentação. Não é a hipótese de os portugueses terem, muito provavelmente, visitado a costa australiana antes de holandeses e britânicos que está errada; é, tão-somente, a novela Cristóvão de Mendonça. As atas deste encontro foram publicadas recentemente (Portugueses na Austrália: as Primeiras Viagens), mas a divulgação foi praticamente nula, em flagrante contraste com a ampla difusão de Para além de Capricórnio, cujas ficções continuam a fazer escola e a polir o ego nacional. Alguns poderão entender esta bizarria como uma prova do provincianismo português; para mim, é sobretudo um sintoma do enraizado divórcio entre público e academia, leigos e especialistas, divulgação e ciência, que persiste em Portugal.
Acaba de sair na imprensa mais uma notícia sobre o possível achamento da Flor de la Mar, o navio que Afonso de Albuquerque carregou com o saque de Malaca após a tomada da cidade, em 1511, e que naufragou pouco depois da partida. As histórias sobre as fabulosas riquezas que transportaria são já uma lenda. A notícia do Público diz coisas engraçadas: a mais flagrante é a identificação precipitada do que estará em vias de ser encontrado com aquela nau. Ora, sabe-se que o local de naufrágio, embora incerto, foi seguramente junto a Samatra (em Pasai ou em Aru). Mas o que é noticiado é que se trata da região de Semarang (e não "Seramang", como lá consta), na costa norte de Java. Não importa? Importa, e muito, é que Java fica a leste de Malaca; a Índia - para onde Albuquerque seguia - fica, caso ninguém tenha reparado, a oeste. A confirmar-se o achado, poderá ser um navio português, mas nunca o Flor de la Mar.
A segunda curiosidade é a referência ao tesouro. Fala-se de "60 toneladas de ouro". Isto é uma informação reproduzida por tudo o que é site de curiosidades e tesouros, mas a verdade, triste e incómoda, é que tal tesouro, muito provavelmente, não existe: não só a carga original seria certamente de valor muito inferior ao que diz a lenda, como se sabe que, após o naufrágio, parte substancial das riquezas deram à costa e foram de imediato tomadas pelas gentes da terra. Um conselho: é melhor continuarem à procura do tesouro dos Templários.
No livro, faço uma síntese da questão: pergunta 19, "Existe um tesouro da Flor de la Mar?"
(Na SIC falam do assunto, mais precisamente na Flor do Mar. Nada de espanholadas, pois então).
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.